segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

A bengala


Crescemos todos os dias
Mudamos todos os dias
Mas às vezes parece que não.
As bolachas do sortido continuam lá
Atiçando-nos os sentidos
Amordaçando-nos o paladar
Corrompendo-nos os sonhos
E o açúcar da cobertura de limão nas mãos
Doce.
Se cresci esqueci-me
Continuo longe de chegar à lata guardada pela bengala de um viúvo
Em cima de um frigorífico velho que resmunga como uma mota prestes a ir para a sucata ao atravessar a aldeia.
E é lutar todos os dias
Para esticar os braços mais um centímetro
Com a bengala a dobrar os joelhos contra o motor que teima em continuar.
E o velho diz que é teimosia
Que era melhor desistir como ele fez
E contentar-me em lamber os dedos
E ver os outros, os que cresceram, 
Sentados em cima da mota pintada de fresco com a ganância que lhes cobre o corpo
A lambuzarem-se com as bolachas que uma criança sem ossos lhes serve na boca
Enquanto os semáforos sorriem para os ver passar.
Crescemos todos os dias
Mas alguns não tem direito a todos os dias
Porque as máquinas perfusoras terminaram o soro mais cedo
E estão fora do prazo de reanimação
E nem uma bolacha provaram
Mudamos todos os dias
Mas a menina que respira vegetais não mudou nada nos últimos anos
Sempre a mesma imobilidade crua 
E os olhos presos num frigorífico qualquer 
Longe daqui
Onde imagino os biscoitos mais doces de chocolate.
E o viúvo continua a bater-me a bengala nos joelhos
E as bolachas continuam a ser devoradas pelos que cresceram
E têm os dias todos presos num fio de pesca
Tão frágil que não quebra
E eu só queria que o fio quebrasse para a caixa cair
E distribuir o açúcar de limão pelas camas articuladas
E garantir que todos tem direito a um dia para poderem crescer
Que todos tem direito a um dia para poderem mudar
Que todos tem prazo de reanimação
Sem bengalas a prender as pernas
É que assim, 
Esticava-me orgulhosamente
Lentamente
Um centímetro dançado para encontrar a caixa vazia
Porque o doce
Está-me nas mãos
O doce
Está-me nos olhos
O doce
Está-me na boca
E eles
Não podem comer-me a carne que dei para perfusão como soro.

(13-01-2014)

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

TU

O meu corpo é para reconhecer o teu 
E cabes em mim como a perfeição no rosto do recém-nascido 
E não cabo em mim de felicidade 
E a felicidade é respirar-te
 E a felicidade és tu
 Como a inocência de um beijo roubado
 Hoje, 
 Compreendo as formas do corpo que tantas vezes rejeitei no espelho 
Entendo a textura da minha pele
 E o meu lado desastrado
 E o sorriso desajeitado 
Compreendo até os dois pés esquerdos: 
Eu existo para te encaixar como a última peça do puzzle 
E tu és o príncipe da cavalgaria solitária destinada a assaltar o meu reino 
E no lugar de um dragão
 Estavam as imperfeições que vieste destruir
 Para me fazeres perfeita aos teus olhos 
Que são apenas a luz que o sol esqueceu na terra 
Venceste tudo 
Conquistaste cada centímetro inexplorado 
Cada fôlego acelerado 
Conquistaste a beleza que não conhecia em mim 
E agora o meu reino és tu
 Quero-te
Vem, faz conchinha comigo que aqui o tempo não chega
 Vamos multiplicar a perfeição 
Aconchega-te no meu peito que existe para te receber
 E dá-me um beijo 
Sacia-me a paixão 
Que para te amar a eternidade é pouco
 Pertenço-te 
Só porque estava escrito no meu corpo
 Antes de eu existir.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Oquestrada - o prato do dia

A Camisola


Há círculos de cor no teto do quarto
Movimentam-se com o olhar
Dançam enquanto conto os beijos que guardo nos bolsos
Como quem conta rebuçados
Sem ninguém ver
Os círculos estão presos no teto como eu no chão
E queria que todos os pudessem ver
Mas se fecho os braços
Desaparecem
E com a fome de não de não os perder
Vai-se a inocência de que as cores existiam para mim
E com a inocência
Vão-se os beijos
E fico com os bolsos vazios
E estou sempre com os bolsos vazios
E quero tanto que rasguem para os encher!
Pintei o teto com as missangas desta camisola
Que serve o meu corpo como o gelado mais doce do Verão
E as missangas foram coladas em casa
E a inocência está estampada nelas
E a maldade está no recheio que me cobre os dentes
(comi os rebuçados e continuo com fome)
E a camisola és tu
E o recheio é deles
Sabe mal


Porto



As sombras
Os túneis
O rio
O liso do rasto dos barcos
Os passos silenciosos
E eu
Cá em cima
Com o vento a serpentear-me o corpo
Devolvendo-me a paz do esconderijo da minha mãe
E o senhor do boné gasto
De alicate em riste
A cortar rubis com o metal
Porque tudo lhe pertence.
Desta ponte
Onde só o vento chega
A cidade é uma orquestra que sinto com a ponta dos dedos
E se pudesse
Saltava para um mergulho
Mas hoje
Prendi um tesouro na ponte
Com caneta permanente
Como a do avô
E preciso de voltar
Para casa!


segunda-feira, 7 de outubro de 2013

O Muro

Comecei a caminhar devagar
A contar as árvores que me seguiam ao lado da estrada.
Não queria correr
Queria saborear o branco que me marcava os passos
Em traços largos
Que dividiam o ir e o voltar
E eu ia
(Deixei a casa vazia
E corri)
Percorri milhas de curvas
E ao cortar a última mancha de chão
Li no muro que me impedia a passagem:
Ama como um passo de corrida!
(07/10/2013)

quinta-feira, 23 de maio de 2013

A Camisa


«As rosas que colhi na estrada apagaram-se no meu quarto porque a música que as mantinha presas à vida, sem água nem terra, parou. E pedem-me com sono a loucura para que as desperte, mas estou muito acordada, há tempo de mais dentro de mim, horas a mais porque o dia se prolongou e não acaba.
Ando a dar horas extra para que me paguem ordenados mais pequenos mas eles insistem em encher-me os bolsos que estão rotos e perdem tudo e mesmo com o tempo todo ainda não cresci e quando crescer não quero ter uma empresa, quero trabalhar sozinha num jardim a transformar com pincéis as rosas em azul para fazerem de céu e terem sempre água em vapor no meu quarto e não se apagarem.
E a loucura, faz-me triste e alegre em dias alternados e hoje os dias alternados estão misturados e tenho um dia par e um dia ímpar a fazer de camisa-de-forças para não me mexer muito e esperar que o sono chegue como quem espera por um beijo quente.
E, enquanto as rosas não crescem, vou freneticamente, lunaticamente, colhe-las para o meu quarto, sem jarra e despir a camisa e pintar o peito com o azul que não consigo pintar nas rosas (teimam no cor de rosa) e fazer buraquinhos minúsculos nos dedos com as folhas como quem lê em braille, cega porque não há água no meu quarto, cega porque não há terra no meu quarto, cega porque já tenho sono, tenho muito sono e os olhos não fecham, não fecham e as rosas apagaram-se porque a música parou quando fiquei com os bolsos vazios.
E a camisa não sai por isso vou continuar à espera do beijo. O azul é impossível de pintar nas rosas. Mas vou inventar um azul para as minhas. Tenho o tempo todo e todo é pouco para criar azul, todo é pouco para esperar. E a camisa és tu. Mergulhei na loucura e descobri que foi lá que te encontrei: prende-me, para não me mexer muito e dá-me um beijo… azul».

21/05/2013