sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Meta

«Agora estou perto, mesmo perto, só preciso escolher entre o amargo que é doce e o doce que é amargo e depois, fico resolvida como um problema matemático.
E a árvore foi cortada porque estava errada, tinha uma folha que não queria cair e todos sabem que no outono as folhas caem mesmo as que estão amarelas de tão verdes, e se não cair, a árvore está estragada porque se esqueceu que era outono.
E é isto, só temos de andar sem olhar para o lado, que eles ditam-nos o caminho como nos ditados que fazíamos na primeira classe quando havia destino por sermos pequenos. Eles ditam-nos o caminho porque andam cá à mais anos e já têm muita experiência (mesmo que tenham vivido num sótão com mofo) e a eles foram os avós sem dentes nem ouvidos a ditar, para não terem de pensar muito. É só preciso escolher muito bem se queremos o doce dos outros ou o doce que a mãe nos tira da mão porque faz mal aos dentes e ficamos a chorar tudo por perdermos o recheio mais crocante de sempre. E cortam-nos a inocência como o cirurgião que abre a carne enquanto fala de futebol. E o amor é um dom inevitável e selvagem, sem forma nem cor, mas só para alguns, porque para a maioria é uma história contada à noite ou um filme, porque de dia e quando a TV está desligada, tem critérios de escolha.
E qualquer que seja a escolha que eu faça, vou ficar sempre sozinha, porque eles vão estar ou a pensar por mim ou a pensar para mim, imagens que eu sei não me pertencerem ou encaixarem no meu corpo.
Por isso, fico a reflectir, sem mexer um músculo que seja, até que chegue o verão, mas os senhores da meteorologia dizem que o verão terminou porque as estações estão extintas e não me movo, vou esperar que os sabores se extingam também, mas para eles, que eu quero saborear os doces como o amor, gulosamente imitando os dias de festa, sem a voz dura e calma da mãe, sentada no mofo do sótão, enlaçada com a folha que se recusou a cair. Fico a reflectir e a olhar-me no espelho, na esperança de ficar pequenina e voltar a fazer ditados com erros. E já estou perto, muito perto e quando lá chegar vou olhar para o lado para que ao verem-me os olhos, percebam que o mundo também me pertence e me deixem ser eu, simplesmente eu, extinta».
 

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Deserto

«O meu reflexo e as sombras cinzentas.
Não falo:
Perdi a voz com a forma das pegadas que a areia levou,
Para onde as sombras tem cor e a chuva cai.
Ontem,
O vento foi mais forte
E levou a luz dos olhos da mágoa.
Estou no deserto
E não tenho sede
Tenho a alegria de estar só e perdida
E de não ter de contar os grãos de areia que passam
Porque parti o vidro da ampulheta
Para o usar como pá
E fazer um túnel no chão
Até ao cato mais doce do oásis mais longe
E ir lá quando me esquecer
Para me lembrar que o sol na água
É um arco-íris
E que o som da areia a passar
É um opiáceo viciante
E Rastejo entre o sal
E os espinhos acariciam-me a pele.
Se pudesse gritar
Gritava uma última gargalhada
Vibrante
Para ouvir o eco da minha voz espalhar-se no fogo do ar
E se pudesse chorar
Chorava tudo
Por todos
Sem tristeza
A chorar pela paz que o choro interromperia
E se pudesse sentir
Sentiria saudade do tempo que perdi a ser eu
E a contar grãos de areia como ouro
E a usar os melhores sapatos
Mesmo quando me faziam bolhas nos pés
Porque eram elegantes
Para depois me despir
Sem vergonha
E vaguear descalça da dor.
Perdi-me
Perdi os sons, a sombra e as cores
Mas
Estou no deserto
E não tenho sede»

(10/10/2012)

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Gula

«A sabedoria sai da boca dos pobres:
O chocolate é a causa das dores de barriga!
Não os ouvi.
Comi a tablete inteira
Gulosa
Ansiosa...
Entre os soluços da respiração
O doce inundava-me o palato
E o sal dos olhos não ardia tanto
Ao rolar indiferente pelo rosto
Seco de ti.
Só o sabor me trazia a vida à memória
E levava em quadrados de prazer
O perfume dos beijos
Que deixas-te nos meus lábios
Ontem
Quando sem imaginar que o hoje existia
Sonhei contigo
Agora,
Larga-me
Não consigo olhar mais!
Leva-me o reflexo que não me encontro
Entre as avelãs que sobraram de ti
E o desejo do doce
Não me deixa dormir
Mas faz-me lamber os dedos
Misturando o que sobrou dos teus beijos
Com o sal que ficou depois
Até adormecer de gorda.
A sabedoria sai da boca dos pobres!
E hoje dói-me a barriga
Porque o sol apareceu
E tu
Não estás
Para me calar a gula...»

(9-09-2012)

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Meia-noite

«Os reis têm sangue azul
E os ricos são VIP's
E a Cinderela era loira
E perdeu um sapato de cristal para não perder os ratos
Que levaram o coche à meia noite
E os icebergues são maus 
Porque mataram o Titanic
E os mais velhos são mais sábios
E os pais tem sempre razão
Mas às vezes não.
E eu não entendo porque o sapato da Cinderela à meia noite não se transformou num chinelo velho
Se ela voltou a ter o vestido roto
E a fada dos dentes deixa uma moeda aos meninos que se portam bem
Mas os meus pais são pobres
Por isso
Deixou-me um caramelo de fruta
E o luar traz os fantasmas que fazem com que as crianças não gostem do escuro
E os adultos também
Mas sabem mentir
E o amor é cego e assexuado como os anjos
Por isso é que os anjos voam à noite
Para os homens não verem
E o choro é o banho da alma
E o riso um anti-rugas fácil
E quando pinto o rosto de branco
E os lábios vermelhos
E calço as luvas
E coloco o laço
Consigo estar calada
E perto do rio também
A ouvir
E por isso luto todos os dias por viver momentos sem mim
Para ao som dos outros saborear
O silêncio.
E há sorrisos que nos fazem acreditar
E olhares que nos prendem
E mantém no peito a possível existência dos anjos
E a Cinderela existe
Mas a fada dos dentes não
Nem a abóbora
Nem os ratos
Nem a meia noite
Nem o sapato de cristal
Mas o amor
Que é assexuado
Solitário
E incolor
Cabe no pé dela
E como não há príncipe
O Titanic morre todos os dias
E eu ás vezes também
Mas não discuto o Fado
Que me cantam ao ouvido
Todos os dias
Ao amanhecer
Porque
O sexo dos anjos
Não é discutível!»

(24-07-2012)

terça-feira, 3 de julho de 2012

Hoje o recheio enjoou-me
Hoje o recheio soube especialmente mal
Hoje o recheio fez dor de barriga
Levem o doce e despeçam a senhora que prepara a massa
Que hoje o recheio está estragado
Não quero mais doce
Amanhã ao pequeno almoço
Como pão como nos dias de chuva
Amanhã não me quero
Que estou estragada e faço-me mal

segunda-feira, 2 de julho de 2012

Nu

Sai de casa
Sai à rua
Sai
Sai
Sai
Sai
Sai
Não és o que querias
Não és quem querias
Não és forte como querias
Não és forte
Não és
Não
Na
Nada
E queres sair pela janela
Mas não sabes saltar
E se soubesses
Tinhas medo
Eles pensam que não
Mas tens
Tenho muito medo
Ris na varanda
Choras no escuro
Choro ao longe
Para que me vejam rir perto
Não sou forte
Não sou forte
Não quero ser forte
Não sou quem...
Queria ser quem me inventam
Sou
Sou
Queria ser
Quero ser
Tu
Tu
Quero ser
Tu
Quero ser tu
Quero despir-me
Ver-te na minha nudez
E saber fazer-me feliz

Julho 2011

quarta-feira, 27 de junho de 2012

Tic-tac

Sabes que horas são? Sabes? Então o que fazes ainda sentado?
Ainda sabes que horas são? Sabes mesmo?
Tens a certeza que o relógio grande da parede não está parado?
 Sabes mesmo ver as horas?
Então, sabes que horas são?
O que fazes parado?
Não ouves o tic-tac furioso?
São horas de comprar um relógio novo, um que funcione mesmo, um que te lembre a cada segundo que o tempo está a passar e que para o minuto final falta menos um tic-tac de ti,
talvez assim te levantes, talvez assim comeces, talvez assim percebas que se ficares parado vais acabar obeso de ti com as artérias entupidas em gordura das tuas vaidades e velho de egoismos.
 Ainda tás sentado?
 Levanta-te
Enquanto o pêndulo marca os segundos ouves o choro dos que passam e ficas-te, a aplaudir como a um filme mau. 
Ontem eras um atleta, porque tinhas a inocência das crianças: e pensar que precisavam usar o truque do chinelo para te manteres à mesa e se paravas levavam-te ao médico contigo a chorar de zangado, porque estavas doente.
 Mas tu cedes-te.
 E engordas-te e deixas-te que te dissessem que não podes fazer nada para mudar o mundo porque o mundo é muito grande e tu és apenas mais um.
 O pêndulo continua
 e daqui a pouco sai o cucu da janelinha de madeira e as tuas molas rebentam porque estas mesmo a apodrecer e não tens tempo de dar corda ao contrario ao relógio de bolso porque o cucu só canta uma vez, uma badalada apenas, que quando a ouvires e te tentares levantar já é tarde, já é muito tarde, porque estás atrasado, perdes-te o tempo todo que tinhas a pensar no casaco que devias usar, ou no carro que não tens e sonhas à noite. 
Olha para o relógio, tens um último segundo para viver, um último segundo para mudares o mundo, o teu mundo... 
Vais continuar sentado?

sábado, 23 de junho de 2012

Só nós dois...



Uma boa interpretação de Tiago Bettencourt....

A minha casa

Desculpa
Porque esqueci que os vícios fazem mal
E não só aos outros
Como o pai do amigo que não temos
A apostar a rua na roleta
E a roleta a ganhá-lo por duas fichas brancas
Ou a senhora dos gelados
Que não sei como não derretem
Se ela tanto fumo
E quente
Quando a vejo acender o isqueiro e consumir-se no cinzeiro da roulote velha
Devagar
Entre cada respiração de nuvens
Que eu pensava nascerem das gotas de água
Mas afinal
Não
Nascem do nariz e da boca dela
Desculpa
Mas ceguei com o branco do fumo
E não vejo caminho para sair do som das tuas mãos
Do sabor da tua voz
Do cheiro da tua pele
Da calma do teu olhar
Da casa do teu abraço
Por isso
Deixa-me dizer-te uma última vez o quanto gosto de ti
E diz que também gostas de mim
Mesmo que mintas
Para guardar o som da mentira como um placebo para a dor
E poder jogar este amor na roleta
Para que ela me ganhe também
E fazer das fichas brancas a minha casa
E chorar
Só o tempo de um sorriso
Quando vir a bolinha rolar e rolar
Indiferente às batidas do meu coração
À força das minhas mãos prendendo-te
Rolar
Até parar no teu número
Porque todos apostaram as suas ruas por ti
E eu
Como vivo ao relento
Apostei-me por ti
E apostaria de novo
E de novo
E de novo...
Porque sei que não posso ganhar
E quero largar-te
E largo
Mas à saída
Entre a chuva
Percebo que te trago comigo
Gravado nas fichas que te ganharam
Para voares com a bolinha preta na roleta a marcar alegrias e tristezas aos outros
Lá longe
Onde a neve apaga o fumo e queima os gelados
Enquanto eu
- Desculpa 
Do outro lado do mar
Ancorada em ti
A ver-te voar
...


Algures em 2012

Na Rua

Na rua as crianças saltam à corda
Os rapazes jogam futebol
Nos meus sonhos
O largo da aldeia
É um parque de diversões
Se abro os olhos e percorro a pequena vila
Fumos
Ruídos
Passos apressados
Das vozes das crianças
Apenas as zangas com as modernas máquinas de jogos
Os jovens
Enchem esplanadas de redes sociais
Nos sofás das salas
Com pacotes de biscoitos
E latas de coca-cola
Vazios
Os ditosos adultos
Do alto das suas responsabilidades
Melhor conhecem os fatos com que se cruzam no emprego
Que o nome dos filhos que conhecem ao jantar
Na rua
Alguns idosos
Sábios seres
Lembram humanos
Jogam dominó
Cartas
A malha
Rindo da desgraça que não sabem ler nos jornais
Com o olhar cansado
De quem conhece a aldeia
Os caminhos
E continua a passear na praça
Para ouvir os pássaros
Olhar as árvores
Sorrir às flores

20-04-2011

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Restos de nada

À poucos minutos atrás, enquanto percorria as folhas do exame, cantarolava com os meus botões esta música, por isso, partilho...




E partilho também um periodo da minha vaga existência em que descobri António Lobo Antunes (grande senhor) e anestesiada pela sua escrita, escrevi o que poderia ter sido o início de um não romance...
Aqui fica, para a posteridade, que agora posso aliviar 20,5 KB do disco da máquina que me conduz até este espaço virtual...
(se encontrar o que aqui falta, talvez coloque junto a este)

«Hoje acordei sozinha.

- Que horas são? Digam-me!

Não haverá noite para este dia? Ficarei eternamente aqui, sob a ofuscante luz deste candeeiro que me domina?
Se tiver de ficar, fico.
Mas sozinha.
Não vos quero comigo apenas ver-vos faz comichão demais dentro da pele quanto mais ter-vos perto. Sempre fui sozinha, fruto de sonhos penso. Nasci dos sonhos de todos foi isso, gerada pelo vento no céu. Vejo as nuvens e penso

- Minhas irmãs

E feliz por poder abraçá-las da torre mais alta do meu castelo.
De vós só uma coisa, que me digam quando a noite chegar para poder chorar a vida e sorrir à morte que nos espera desde o primeiro choro de ar.

Quantas vezes ouvi

- Aquela não é normal, não pode

E eu não normal de facto. Quem normal? Tu, eles, não.
Todos somos loucos.
Se cada um a dada altura da vida, quando sonhos por cumprir, que vivemos nas noites mais quentes de inverno e vidas que não nossas, que as nossas mais leves, fossemos procurar patologia psiquiátrica (loucos) o médico diria no seu longo diagnóstico ao fim de exaustivas sessões

- Todos loucos estes

Bipolares, deprimidos, ansiosos de nada, hiperactivos, coitados, todos loucos, a humanidade louca com eles, o planeta louco (será que o planeta louco?) e no entanto, muitas vezes pensei, serei louca eu e desconfiava, porque diziam

- Aquela não é normal, não pode

Pensava haver um normal. Mas definam-me normal. Vocês normal? (Quem normal Deus meu) Todos com fantasias, ilusões, eu deixei muitas crescerem apenas à noite porque suspeitava, eu não normal e como viveria se louca? Acabaria como a tia Amélia numa casa escura a falar com ervas que cresciam no peitoril da janela do quarto, duendes dizia, duendes imaginem. Ela louca eu não. Nunca. Ontem talvez, hoje não, normal eu também.
Cresci sabiam, cresci e a normalidade acabou por me atingir como a todos e destruir os sonhos, a liberdade, a alegria, cultivando solidão como nos lugares comuns, sorrisos escassos como água no verão, olhar vago, uma imagem no espelho não conhecida

- Esta eu

Agora, só à noite por vezes me encontro.
 Culpa vossa.
 Por isso, se o dia não acabar, fico, mas sozinha, não vos quero comigo apenas ver-vos faz comichão demais dentro da pele, se vier a noite, digam-me e fugirei para o único espaço verdadeiramente meu, os sonhos.



Hoje, lembrei a casa da minha infância onde não louca, não normal, não assim, não nada onde sorrisos e o colo da minha mãe.
Sem chão, flutuávamos, pela sala, pelos quartos, pela cozinha, sem corredores, para quê, espaços que ligam divisões solitárias onde ninguém se encontra, todos fugindo para as suas celas.
Na minha casa não.
Nem lembro se portas, lembro o sofá, enorme ele, o meu pai deitado de pés encolhidos, minha mãe sentada à proa e eu ao leme, no centro, com as pernas do pai nas minhas e a fazer-lhe cócegas enquanto notícias na tv.
Se um filme ou cartoons eu quieta e o pai

- Não brincas agora

Fazendo-se irritado e eu risos. Não era a tv que via, era o pai

- Não brincas agora

Para eu colocar-me de pé no sofá e a minha mãe a queixar-se que caía ao mar do não chão da sala e eu a tentar salvá-la enquanto lutava com o pai usando a espada da ponta dos dedos entre cócegas.
Perdi sempre.
 A mãe juntava-se ao inimigo e eu caía em risos até ficar sem ar e depois quietos os três em mimos e beijinhos.
Não tenho irmãos. Sempre sozinha.

Lá fora, um espaço enorme, árvores, galinhas, cães, do senhorio, onde podia brincar sem muito barulho para não incomodar, a casa minha, não, do senhorio.
 Nada meu.
Meus os beijos, os risos, as cócegas ou sonhei?
 Meu. (Acredito que meu por isso meu mesmo que mentira).

Os únicos que não

- Aquela não é normal, não pode

Para eles eu perfeita.


Agora, é noite.

Apenas uma pequena vela transforma o escuro em sombras cinzentas.
 Do meu sofá (não o da infância outro, mais pequeno), encostado ao vidro, vejo o reflexo das coisas, o meu reflexo.
 Não há luar.
 Não há mundo além de mim, deste sofá e das sombras, de outro modo eu o veria. Que bom assim sem mundo para me lembrar do tempo e trazer a saudade do que não existe (dado que tudo escuro), eu o tempo, aqui o tempo, a vela o tempo.
De repente, um leve sopro e nada. Noite, silêncio, nada existe, nem eu, o mundo feito vazio como no princípio.
Tudo é vazio.
Existem pensamentos que rodopiam, emoções, vozes, alegrias e tristezas, eis o vazio, o que tem em si tudo o que não existe e é sombras com velas.

Tenho dezanove anos. Sou eu. Não tenho forma, se me olho ao espelho, uma estranha e assusto-me

- Não sou isso eu

Sou emoções, ideias, riso, choro, tempestades, calma, sem forma.
Ninguém me conhece, aliás, ninguém conhece ninguém. Todos capas como as do espelho e outras mais, muitas mais, tantas quantas as partes de nós que queremos esconder, esquecer.
 Eu não me conheço, conhecesse e saberia tudo de mim.
Não sei. (No escuro sou olfacto e tacto e ouvidos, eu não olhos também?).

Estamos às escuras porque faltou a luz. É inverno, trovoa.
Enquanto menina, minha mãe

- É Deus zangado com os homens

Que bela imagem esta, esse ser Todo-Poderoso do Seu enorme trono gritando com a gente

- Estais sempre errados

E o quanto erramos Senhor, como estamos errados, somos errados, gostamos do errado, não queremos o certo que nos oferece (se fizermos certo termina a trovoada?) insistimos mesmo assim, que havemos de tornar o errado certo e mudar tudo.

Um dia um professor (errado também) inventou uma teoria qualquer e fez a minha mãe errada

- Acredita que você errada Senhora?

Você não erra, sempre certa.

O mundo muda quando crescemos, sabiam?
Dormimos e trocam-no por outro e tudo diferente e dizem-nos

- És uma senhora agora

Sem que não mais que uma noite sem sonhos.

Estamos às escuras porque faltou a luz. Vivo com os meus pais, que brigam com a caixa de fósforos e uma nova vela que estava escondida da gente na gaveta.
Maravilha das maravilhas, fósforo acesso e o mundo existe de novo, ali a TV, os pais, eu aqui (e sou eu de facto?) a nossa casa aparecendo e desaparecendo conforme a mãe percorre os diferentes cómodos (talvez verificando se não fugiram ou mudaram de lugar, que as coisas gostam de nos pregar partidas). Esqueça a luz Senhora. Eu gosto do escuro não se inquiete, o escuro sou eu.
 Se escuro, não dói tanto e o mundo mais leve por não ser certo nem errado, por não ser mais que sonhos e ilusões no ar com as partículas de oxigénio e azoto.

Lá fora a tempestade acalma e a chuva cessa por fim, (terá Deus desistido de nós?), o vento faz ouvir o seu canto ao dançar com as árvores, indiferente.
Vela apagada, candeeiro acesso regressa o tempo, o mundo que havia desaparecido e a dor, mais forte, escrevo, as palavras analgésico potente, esqueçam a morfina dêem-me um lápis e papel que mando a dor embora, não preciso de vocês, não preciso de nada.
 Deixem-me.

Hoje, não tive aulas. Sobre o meu percurso académico é tudo o que releva saber. Sou boa aluna, não brilhante, fui brilhante, hoje não. Limito-me a perceber o que me impingem saber e a decorar o que não quero entender.
 A escola é uma instituição magnífica, transforma homens em robots, peças de um puzzle homogéneo.
 É tudo.

Tenhos saudades, de um abraço.
Sentir que posso cair sem medo do chão, sem me mexer, segura, dois unidos num momento, longe da estética das palavras, a linguagem dos sentidos, dos instintos, do mais selvagem animal, universal, nesse espaço intemporal.
Amanhã vou procurar esse lugar, ainda lembro o caminho, como o poderia esquecer, conheço cada cheiro, toque, curva e esquina, percorri-o muitas vezes tantas que faz parte de mim eu sou ele, ele eu (serei o caminho?) talvez o encontre (encontro) lá, dor alguma, paz, o mundo ali, ali o construi e pintei com a minha cor que só eu e eles (os que existem, os únicos que existem) conhecemos.

Onze horas. Deixo o sofá. Boa noite. Entrego-me ao cansaço, talvez para sempre, talvez até amanhã.


O mundo dos sonhos ainda não me resgatou para si de forma que o sol fez nascer um novo dia, nova oportunidade para escolher o certo e desistir do errado

- Desistam!

Senhor, desista, nasce o sol mas nós prolongamos a noite, não queremos nascer.
Permanecemos imóveis no nosso próprio ventre. Medo de enfrentar a luz, respirar, viver, sair da caverna sem dores que construímos para proteger de amar.
É tarde. Não temos força, não queremos força se fortes mudamos de facto mas para nos tornarmos melhores? Piores? Medo. Do desconhecido que evitamos em cada esquina porque talvez aí nos encontremos e como reagir se

- Encontrei-me. Esta eu. Eu aqui.

Talvez discussões e pena do que nos tornamos. Por isso, nós imóveis sem aurora ou poente como o sol nós apenas um segundo e a morte.

Caminho. Finda mais uma tarde de patologias e farmacologias o regresso a casa é calmo, tempo para pensar enquanto pegadas sobre as folhas caídas no chão que me denunciam ao passar, umas castanhas, algumas, mais resistentes, verdes ainda, girando no ar pintando a paisagem, informam

- É inverno

Receando que a gente se esqueça do tempo que corre.
Quando criança, antes de terminarem os sonhos e nascer a dor, eu incapaz de caminhar sobre as folhas andando entre os espaços por elas deixado no chão com pena de as magoar.
Outra coisa que me assustava e agora conforta (como mudamos Deus meu) é a noite. Todo aquele silêncio frieza sons sussurros dos bichos no campo, assustava-me, tudo sem vida triste e eu repleta de energia e luz agora, identifico-me na noite aparentemente calma calada escondendo guerras risos tempestades mistérios.
No silêncio a confusão em mim parada no escuro a dor menor eu mais forte e viva.

Hoje, caminhar sobre as folhas, assistida apenas pela lua sabe especialmente bem.

Vi-o. De novo. Por um breve momento quando olhos nos meus (um segundo apenas). Naquele tempo parado, não quis que o dia terminasse nunca, aquele segundo do dia infindável em mim. E lembro o cheiro, desde o primeiro instante em que o mundo pareceu, para mim, querer mudar (talvez ainda haja esperança Senhor, tenha calma).

Não. Não há qualquer esperança, esqueça

- Desistam!

O mundo não muda nunca, continuará as suas infindáveis voltas em torno do sol para se manter quente não cair no espaço, cada vez mais lento mais a desistir em cada movimento mais escuro mais como os homens mais, nada.

O mundo não muda nunca (não desista Senhor).
Disse que o mundo pareceu querer mudar, menti.
Eu é quem pareceu querer mudar (quero?) mudar para não lembrar o olhar não lembrar o cheiro, mudar e ter o olhar e o cheiro. Vê-lo. (desista eu é quem muda eles não e se eu mudar eles iguais?).

Vê-lo.
Vou abrir os olhos aqueles que se escondem atrás destes incapazes (para que servem estes?) vou abrir os olhos aqueles que sentem tocam cheiram riem choram os que vêem e então eu diferente e o olhar e o cheiro meus e não uma lembrança de um segundo que não quis fim nas folhas do chão.

No futuro, quando eu diferente o mundo diferente também porque o olhar e o cheiro com ele e se o olhar e o cheiro com o ele o mundo melhor e eu sozinha de novo mas não faz mal porque respirando o mundo tenho-o comigo.

- Mudaram?!»

(Algures em 2010)

quinta-feira, 21 de junho de 2012

As tranças

Quando morrer
Quero ser as paredes gastas da casa da senhora dos cabelos brancos
Ao lado da linha onde se ouve o grito dos comboios
Não
Quando morrer
Quero ser a tinta que cobre as paredes da casa
Rachada pelo vento
Pelo sol
Pelas histórias
Que ouviu dos comboios
Melhor
Quando morrer
Quero ser as lascas soltas da tinta da casa da senhora do cabelo branco entrançado
Só para saber as histórias dos anos e não ter de me mexer
Mas esperar como quem sorri
A queda
Para voar
É que da janela do comboio
As casas misturam-se e não sei qual é a minha
Só nos dias em que a senhora está na varanda a costurar
Porque ela abranda o tempo com as linhas
E eu abrando as linhas das manchas que passam no assento
A olhar a paisagem que conheço em borrões de tinta
Quando nascer
Quero ser as tranças do cabelo branco
Para me sentir segura
E hoje
Porque não vivo
E estou sentada
Encostada ao vidro
Enquanto as manchas se transformam lá fora
Não quero ser eu
Então
Invento sorrisos com os olhos
E choro com os lábios
E beijo os segredos dos pensamentos dos que dormem na viagem com as mãos
E faço carícias no ar com os sonhos que não tive em criança
Porque tudo era a realidade
E o revisor diz-me que o bilhete não serve
Que para fazer a viagem toda tinha de ter um maior
Mas sou pequenina
Um maior não cabia em mim
Mas não me ouvem
E querem que eu saia na próxima paragem
Mas eu não posso
O próximo comboio é muito tarde
É muito noite
E a casa com a tinta e a senhora esperam-me no final da linha
Por isso
Grito com o silêncio das palavras
E escondo o rosto com os braços
E viajo clandestina
A contar os segundos como grãos de areia
Até ao abraço eterno das tranças
Que traz o início de mim

20-06-2012

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Bom dia...



Pesquisem... tem uma história grande....

E para acompanhar esta história antes de um super exame:


«Dou mais um passo
Afundo os pés na areia e continuo
Em breve
Nascerão flores destas pegadas
Quando cortar a linha final com o vento como um sorriso
Vou encontrar o sonho
Que guardei na gaveta
Enquanto choviam cantigas
E vou segurá-lo
Com as mãos fechadas
E voar com as aves
Que vieram colher as flores
E deitar-me na areia
De braços abertos
Olhar na direção das nuvens
A saborear a viagem»

SA 20-03-2012

terça-feira, 19 de junho de 2012

Para me acompanhar ao adormecer...

Adormecer

Acordei e senti o peso do mundo como uma bola gigante
Estava colado à cabeceira da cama e impediu-me de levantar
Por isso
Cedi
Não me mexi nem protestei
Protestar para quê?
Ele ia ganhar
Ganha sempre
E agora vou ficar aqui
A assistir ao filme que não quis ver
Nem no cinema quando ganhou um óscar
Porque estava ocupada
A correr para sair da sala
Com as mãos a cobrir os olhos e a voz a tapar os ouvidos
E a senhora das pipocas a gritar comigo
Porque o balde caiu na carpete aspirada
Estou presa na minha cama
Sem pipocas doces nem os gritos da menina
A assistir ao filme
Aquele que nunca quis ver
O filme que retrata a história do dia em que desisti de lutar
O dia em que me venci pelas vozes dos que estão lá fora
E desisti de moldar o mundo com as minhas mãos
Para torná-lo redondo
Como nas fotografias dos senhores do espaço
E o mundo 
Só é redondo nas fotografias do espaço porque são em 3D
Que da janela do meu quarto
É um retângulo de casas e terrenos dos vizinhos
Que conheço de manhã quando o padeiro vem trazer o pão
E me dizem bom dia ainda em pijama
E eu só queria que a sessão terminasse
E me trouxessem a cura dos males todos numa bandeja
Para poder calçar as botas de trabalho do pai
E sair à rua a tapar os buracos das paredes das casas do meu bairro
Que é o mundo
Para que a água dos olhos não tivesse por onde sair
E não houvesse mais Inverno nas telhas do meu quarto
Rachadas pelo sol que vi
Uma vez
Antes da sessão começar


28-05-2012

segunda-feira, 18 de junho de 2012

Nomes

Há dias em que pensamos que conhecemos quem caminha na viela ao lado
Há dias em que pensamos que nos conhecemos
Há dias em que pensamos que sabemos a quem pertencem as pegadas que deixamos lá atras
E outros
Em que pensamos conhecer o vizinho da porta em frente
Mas na verdade não
O que conhecemos são nomes
Sorrisos
Ou leves acenos de adeus
Dos outros e de nós sabemos pouco
Sabemos talvez a marca do carro
Ou o número da porta
Ou o do telemóvel
Que temos apontado para não esquecer
Ou o padeiro que traz o pão
Ou a que horas toca o despertador
Porque lhe ouvimos o som atravez da parede demasiado fina
Enfim, sabemos o que todos podem deitar-se a adivinhar porque somos todos iguais
Estamos todos ligados uns aos outros pelo mesmo cordão umbilical
A que o criador um dia chamou de vida humana
E limitamo-nos a correr sem saber para onde
A correr sem saber porquê
A correr sem saber para quê
A correr sem saber como
Ou para quem
Com as mesmas sapatilhas velhas
E gastas
Que herdamos dos avós paternos a sorrir numa fotografia
Guardada numa arca que ninguém quer abrir
Porque é mau mexer no passado
E no presente também
E no futuro não podemos
Porque somos cegos para o agora
E porque o avô perdeu a fortuna que devia ter chegado até nós
Mas não chegou
Deve estar no fundo da arca inundada em mofo antigo
Que como não podemos abrir não sabemos o que tem dentro.
E a arte de não conhecermos ninguém
Nem a nós mesmos
É sem dúvida o que fazemos melhor
Esqueçam o Picasso
Matem os poetas
Descobri o verdadeiro dom dos homens:
Não se conhecerem e pensarem que é mentira
É que quando olhamos no espelho
Vemos exatamente aquela imagem que não queriamos ter
E pensamos
"Eu sei quem és... és eu..."
O eu que eu não queria ser
Porque o eu que eu queria
Matei-o antes de nascer
Como todos
E por isso
Há dias em que mentimos melhor
E outros em que mentimos igual
Como sempre
Porque pensamos que nos conhecemos bem
Quando o que de facto vemos uns dos outros são fardos
E fatos
E nomes
E apertos de mão
A fingir como nos filmes
Mas continuamos a sorrir
E a chorar somente à noite
Com o travesseiro do mercado negro
Que os filhos ofereceram no dia dos pais
Porque só nesse dia temos filhos
Somos filhos
Nos outros andamos a jogar ao esconde
Para passar o tempo
E não descalçamos nunca as sapatilhas
Para que as fotografias da arca sintam que continuamos a correr
Porque nós não paramos
Porque nós não podemos
Porque nós não somos
Porque nós não conhecemos mais que reflexos no espelho
E até de nós nos escondemos no jogo a que chamam sociedade.

15-06-2012